MACROEVOLUÇÃO POR ESPECIAÇÃO EM DROSOPHILA‏. FILOSOFIA DA CIÊNCIA COM KARL POPPER

Drosophila melanogaster
 por Victor Rossetti

Estudos da evolução biológica do ponto de vista molecular são geralmente feitos em animais cujo ciclo de vida é rápido. Essa escolha é respaldada no fato de cada geração ter uma expectativa de vida curta, e como a evolução trabalha ao longo de gerações (ou descendência com modificações) para promover a origem de novas espécies, esses animais se tornam excelentes ferramentas no estudo da evolução. O animal mais escolhido para se estudar a dinâmica da evolução, e como se comportam os genes, é a mosca de fruta. Mesmo com tantos estudos ainda se descobre diversos elementos ou mecanismos que interferem direta ou indiretamente na forma com que os genes são expressos, como são expressos e com que frequência isso ocorre.
Por exemplo, um dos primeiros genes a ser estudado foi o gene White. Este gene e estudado desde 1910 em moscas de fruta e dentre tantas funções, é responsável pela conformação estrutural dos olhos do animal. Ao longo dos anos descobriu-se diversas outras características genéticas dele, seu caráter pleiotrópico reconhecer a multiplicidade de sua atuação em outras partes do corpo. Isso leva até mesmo a necessidade de mudar o conceito “dogmático” de gene criado por volta de 1901.
Drosophilas são estudadas á muito tempo como vimos acima. Um dos estudos mais importantes resultou da divisão das drosophilas em 8 populações, dando origem a uma espécie nova, a Drosophila psudoobscura. O primeiro estudo foi feito em 1983, e os cientistas analisaram olocus Amy, responsável pela produção da amilase. A criação de novas espécies em laboratório que melhor foi documentada, ocorreu no final da década de 80 por William Rice e G.W. Salt. Eles criaram um mosca-de-fruta Drosophila melanogaster, usando um labirinto com três escolhas diferentes, tais como escuro/claro e seco/molhado. Cada geração era colocada no labirinto, e o grupo de moscas que saía em duas das oito possíveis saídas era separado e colocado para reproduzir com membros do seu próprio grupo. Após trinta e cinco gerações, os dois grupos e os seus descendentes não conseguiam procriam entre eles mesmos quando essa era a única oportunidade de se reproduzir.



A pesquisadora Diane Dodd também conseguiu demonstrar um exemplo de especiação alopátrica por isolamento reprodutivo criando a Drosophila pseudoobscura após apenas oito gerações usando diferentes tipos de comida, amido e maltose. A experiência de Dodd tem sido facilmente replicada por outros, incluindo outras espécies de moscas da fruta e alimentos.
A seleção artificial é um mecanismo análogo á seleção natural. No caso das drosophilas, embora tenha sido usada a seleção artificial ela representa um mecanismo idêntico a seleção natural. Muitas pessoas argumentam que o fato de ter sido direcionada pelo homem ela então pode ser considerada resultado da atuação de um designer, no caso, o homem. A questão essencial é que sendo o homem ou não o agente seletor, a seleção sempre vai existir, já que o organismo vive obrigatoriamente em um ambiente preenchendo um nicho, um contexto, que influencia direta e indiretamente sua biologia e comportamento. No caso da seleção artificial o agente seletor é o homem, na seleção natural o agente seletor é o ambiente onde o animal se situa ou passa a viver. Um local recém conquistado por um grupo de animais pode conter diversos agentes seletores que favorecem a criação de novas espécies.
Um animal que coloniza uma nova área, certamente tem grandes chances de gerar uma nova espécie. Isso ocorre especialmente em momentos após grandes catástrofes. Eventos de grande impacto na vida da Terra, como a catástrofe do período final do Cretáceo ou do Permiano (ou todos aqueles que dividem períodos geológicos) abre novos nichos a serem completados pelos sobreviventes. Preencher nichos a longo espaço de tempo permite processos de especiação. Completar um nicho significa coloniza-lo, estabelecer-se no local adequando-se as novas condições que ali existem, passando a integrar um relacionamento inter e intra-espécies. Adequar-se significa que o ser vivo que passa a viver ali tem um elenco de características que o favorece na luta pela sobrevivência sob aquelas condições ecológicas especificas.
O animal preenche então um nicho ou diversos nichos, uma vez que diferentes regiões de um mesmo ecossistema pode ter fitofisionomias, geomorfologia e climatologia especificas, isso permite que novas espécies surjam e se firmem adequadas aquele ambiente. O agente seletor sempre vai existir, seja ele direcionado, no caso do homem, ou não direcionado, caso feito pela natureza em si.
Por essa razão, há a impressão de que os animais são moldados propositalmente para cumprir tal função. A ideia de que um animal é concebido inteligente por uma entidade criadora para viver em um determinado local não é muito coerente quando se olha a dinâmica da diversidade biológica do mundo.
A natureza pode ser vista sobre dois aspectos distintos, embora não únicos. Existe a linha teísta que pressupõem a criação intencional da vida e do universo, e a visão naturalista do universo e da natureza vida como fruto de processos não direcionados. Há ainda outras linhas menos ortodoxas mas que não entraremos em discussão. Uma delas seria a de que a natureza e tudo que existe não foram criadas por Deus ou por processos naturais, mas sim pelas forças malignas, por essa razão a natureza é tão cruel na sua forma de ser.
Não que seja uma guerra explícita entre a razão e a superstição, uma vez que a religião pode ser usada para explicar fenômenos. Isso não quer dizer que ela explique da maneira mais coerente possível, ou de forma factual, mas sim usando muitas alegorias teológicas. Entretanto, a religião faz parte de um dos modos que a humanidade criou para produzir conhecimento. E isso deve ser respeitado (embora também criticado).
Do ponto de vista moral a ciência não pode dizer absolutamente nada, uma vez que ciência explica os fenômenos do mundo e não os justifica. Do ponto de vista científico a natureza não é moral ou imoral, mas exclusivamente amoral.
Isso lembra uma situação recente que passei. Pinguins sendo atacados por um leão marinho causam grande comoção pelo fato de serem animais que cativam as pessoas. Um ataque de um leão marinho tornou o pinguim o “mocinho” e o leão marinho o “bandido” da história segundo minha companheira que assistia também tal cena.
Posteriormente houve uma inversão dos papeis quando um leão marinho se refugiava sobre um iceberg. Um grupo de orcas realizava um ataque em conjunto formando ondas para deslizar o leão marinho do iceberg até o mar e ataca-lo. A inversão ocorreu de maneira rápida, de tal forma que as orcas ficaram sendo as “bandidas” e o leão marinho o “mocinho” da história.
No final de tal apresentação, expliquei que a orca, ou baleia assassina, biologicamente não era uma baleia, mas sim um golfinho. Então, fui questionado; porque as coisas tinham que ser assim? Porque tantos animais carnívoros? ou especificamente porque deveria haver leões, tigres e onças como predador de topo se todos tem a mesma função e poderiam exercê-la tanto no Brasil quando na África ou na Ásia? A questão em si,, apesar de feita por alguém lego no assunto, era “Porque tantos animais distintos realizando a mesma função em diferentes locais do planeta?”
Quando fui questionado desta forma respondi que esses questionamentos ofereciam exatamente um exemplo claro de como a evolução funciona. Ora, se a função ecológica desses animais é a mesma então porque criar animais diferentes? Poderíamos colocar zebras em todos os continentes para fazer o papel de consumidores primários, hienas como secundário e leões como carnívoros predadores de topo, e as funções seriam exatamente as mesmas. Não precisaríamos de cangurus e toda fauna marsupial herbívora da Austrália. Se há essa diferença ela pode ser sim resultado de um processo evolutivo, ou Deus teria usado sua criatividade para confundir a humanidade?
Evolutivamente, como vimos acima, temos exemplos de que animais sujeitos a seleção podem gerar espécies novas, e que as variações não trabalham unicamente no nível microevolutivo. De fato, nunca foi provado cientificamente que as variações não podem transcender o limite de uma espécie até formar outra.
A principal questão é que grande parte das alegações usadas por líderes religiosos para validar suas convicções pessoais a respeito das comunidades biológicas e do universo não podem ter respaldo na ciência por serem afirmações teológicas e não científicas.
Metodologicamente há diferenças claras e especialmente no que se refere ao falseamento científico. O filosofo Karl Popper afirmou que o que caracteriza uma teoria cientifica é a capacidade que nos temos de falsea-la, ou seja, de que a teoria poder ser refutada. Se não é possível refutar então certamente não é uma teoria científica. Algo que é cego á ciência não significa que não exista, mas que necessariamente não pode 
Karl Popper (1902 —1994)
Vejamos um exemplo; suponhamos que alguém afirme que acima de nossa cidade há um grande disco voador que não pode ser visto porque desfruta de um escudo de transparência.
Cientificamente não podemos resolver a questão, porque não é observável, portanto, não é possível coletar dados ou desconstruir a ideia de que ali há um disco voador. Assim, a idéia e si não é cientifica, não é possível refuta-la (ou mesmo provar a sua existência). O que torna uma teoria cientifica segundo Popper não é o fato de ela ser provada mas de que pode ser testada na realidade e demonstrada como falsa. Isso quer dizer que uma teoria falsificável não é uma teoria falsa, mas que uma teoria cientifica pode ser provada como falsa graças a observação do fenômeno.
Isso significa que a gravidade, a evolução são teorias que podem ser testadas, observadas e falsificáveis. E são teorias confiáveis, porque teorias requerem um conjunto de leis ou hipóteses que a sustentam. O termo lei é algo informal, que não representa uma ideia consolidada pela ciência, quem faz isso é a teoria. Quando dizemos que a evolução é só uma teoria estamos corroborando sua validade acadêmica, pois uma teoria é o resultado da produção científica, de um paradigma consolidado pela ciência que ultrapassou os limites do falseamento. Isso quer dizer que apesar de ser falseável ela se mostrou coerentemente e explicativa. A evolução é tão teoria quando a teoria da gravidade, portanto, se a gravidade é válida então a evolução também é. Assim sendo, ambas são teorias confiáveis, e a evolução esta para a transformação da vida assim como a gravidade esta para os objetos que caem ao chão.
Criacionistas argumentam que a evolução potencialmente não pode ser provada porque ocorre em uma escala temporal grande, ou que o Big Bang não é observável porque já ocorreu. Mas ainda sim são teorias consistentes, comprovadas cientificamente e no ambiente acadêmico são consideradas fatos científicos pela grande maioria dos cientistas por apresentarem diversas evidencias que comprovam que esses fenômenos realmente ocorreram.
O fato de não testamos a evolução em uma escala de tempo geológico de milhões de anos não a torna uma pseudo-ciência. De fato, seria o mesmo que afirmar que a policia científica não é científica porque não acompanhou o crime em tempo real. Ora, mas as evidências de que um crime ocorreu estão bem a vista e as pistas podem direcionar a polícia com seu aparato tecnológico a descobrir quem foi o assassino. A mesma coisa ocorre com a evolução biológica e o Big bang. Há evidências claras, diretas e indiretas de que eles são fatos científicos.
Não ser falseável como um disco voador invisível, ou a existência de um deus faz do criacionismo uma não ciência, pois as evidências científicas geram conclusões científicas e conclusões religiosas ajustam as evidências a uma conclusa pré-concebida, uma vez que são reinterpretadas de tal forma a sustentar uma cosmovisão proselitista. Isso ocorreu ao longo de toda a história do cristianismo, especialmente quando as ideias de Platão que foram acopladas ao cristianismo, dando lugar a um platonismo vulgar ou Platonism for donkeys. Assim, criacionistas usam as evidências que suportam uma interpretação naturalista do mundo para sustentar uma visão teísta em que Deus é o criador de todas as coisas. Isso vira o ônus da prova diretamente no peito de quem afirma que tal divindade existe e que pode ser provada cientificamente. Reinterpretar dados segundo uma concepção pré-concebida não é produção científica e não prova que algo existe.
O desafio então é dado; é possível usar o empirismo, o falseamento e toda a metodologia científica para concluir a ideia de que Deus realmente existe? Deus pode ser um fato científico quando se aponta o ônus da prova no peito de quem afirma?

REFERÊNCIAS

* RICE, W.R. AND G.W. SALT. (1988). “SPECIATION VIA DISRUPTIVE SELECTION ON HABITAT PREFERENCE: EXPERIMENTAL EVIDENCE“. THE AMERICAN NATURALIST 131: 911-917


* O LIVRO DA FILOSOFIA. GLOBO LIVROS. NA MEDIDA EM QUE UMA AFIRMAÇÃO CIENTIFICA TRATA DA REALIDADE, ELA DEVE SER FALSIFICÁVEL.

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